“Aos dezesseis anos eu matei Marcelo. Agora, aos trinta e seis, eu vou matar Marcele.”
de Diógenes Moura
O Livro dos Monólogos (Recuperação para ouvir objetos) explora e expande o diálogo entre literatura e fotografia que marca a trajetória do escritor e curador pernambucano Diógenes Moura. Conhecido por duas décadas de trabalho como curador de fotografia, sobretudo à frente da Pinacoteca do Estado de São Paulo, ele mostrou sua prosa urgente, intensa e irônica em seis livros anteriores e também nas intervenções poéticas e personalíssimas que comentam as duas centenas de exposições de fotografia que organizou. Aqui, os dois campos de expressão se unem com intensidade e intencionalidade inéditas. “Originalmente, a única coisa que faz sentido pra mim é escrever. Sempre vi a fotografia ligada à literatura”, diz Moura. “O Livro dos Monólogos dá forma a algo que sempre existiu e que venho desenvolvendo mais precisamente nos últimos dez anos. É uma tentativa de irmanar literatura, imagem, fotografia e existência”.
Dimensões. 16cm x 23cm
A narrativa se relaciona a quadrantes específicos de três cidades brasileiras, que o autor conhece por experiência imersiva: o bairro paulistano onde vive, ex-refúgio pacato de velhinhos que hoje registra quatro arrombamentos semanais; o arrabalde de Tejípio, no Recife, onde se criou, numa casa de chão de ladrilho hidráulico depois soterrada por uma linha de metrô; e o bairro da Liberdade, em Salvador, cidade onde viveu durante 17 anos e que tem até hoje tem uma profunda relação entre memória e agonia. Nesses cenários de ruína deflagrada e insidiosa violência, aparições de naturezas diversas emergem, ora no texto, ora na imagem, ora em ambos. Gente real e próxima, gente do passado do autor ou alheio, gente imaginada, gente vista em uma fotografia. A mulher que surgiu de branco, descalça, na chuva, e sumiu, uma noite no Minhocão; o homem abatido com uma flecha cravada no pescoço no centro de São Paulo; a sobrinha transexual que Moura ajudou a criar, Marcele, que é personagem importante no livro; a “menina de nove anos com corpo de criança e rosto de mulher”; a noiva da foto centenária e bordada na parede do gabinete; o próprio Diógenes, em alguns retratos feitos por fotógrafos amigos. Fragmentos de dramas e sonhos dessa galeria híbrida de personagens – que Moura procura entender “entre vida e morte, entre público e privado, na janela das suas casas, numa notícia de jornal, na tela de um computador ou celular, nos gritos das ruas, na esquina mais próxima”– se acumulam no texto veloz. A eles, juntam-se os invisíveis: gente em situação de rua e usuária de crack que mora sob invólucros de plásticos no centro de São Paulo. Irônicos em seu extremo apuro estético, os registros do autor de pessoas e famílias fumando crack em casulos semitransparentes, às vezes à luz do dia, remetem a alguma performance contemporânea. “Não é fotografia, é uma imagem diante do abismo”, diz Moura sobre seus pacotes-existência. “Não sou fotógrafo, nunca fui, nunca serei.” Imagens chocantes de um elaborado abandono, elas renovam um desafio que ele parece considerar inerente à fotografia, assim como à vida: a capacidade de enxergar o outro.
Expor “a prova mais perversa da violência urbana que ultrapassa todos os limites nas capitais brasileiras” é parte da missão a que o escritor se dá em O Livros dos Monólogos, na tentativa, talvez, de fazer pensar sobre “esse terreno devastado, ignóbil, que não percebemos quando estamos nas ruas, dentro dos ônibus, dos automóveis e dos metrôs, anônimos, (...) entre abandono, construção, progresso, desabamento e descoberta, entre vida, sangue, poesia, resquício e morte”. A crueza de sua prosa-poesia é uma forma possível; a imagem também, desde que se entenda pelo que é. “Em tempo algum uma imagem será apenas uma imagem. Em todos os tempos uma palavra será sempre uma palavra”, afirma Moura.